ANTROPOSMODERNO
Les discours-écran (Os discursos tela)
Colette Soler

Nossa época está marcada por uma extraordinária produção literária sobre o traumatismo ” escrito no singular ” e sobre seus tratamentos possíveis.

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Colette Soler, février 1998

Les discours-écran (Os discursos tela)

Nossa época está marcada por uma extraordinária produção literária sobre o traumatismo ? escrito no singular ? e sobre seus tratamentos possíveis.
Esta ênfase não data de hoje, remonta, em linhas gerais, ao início do século, de forma mais ou menos contemporânea com a psicanálise e com o choque na civilização provocado pela primeira guerra mundial. A noção de neurose de angústia é disso, sem dúvida, um dos primeiros traços que testemunha claramente essa conjunção. No conjunto do discurso, o tema insiste hoje particularmente na psiquiatria. Mas igualmente, nos discursos das políticas de saúde, com todas as questões que dizem respeito notadamente à indenização dos traumatizados das grandes catástrofes e também no campo do direito, quando se trata de decidir sobre problemas relativos à responsabilidade.
No entanto, na psicanálise, especialmente a lacaniana, o tema não está tão em voga, sendo suplantado pelos temas da fantasia e do sintoma. Quanto a isso, observa-se uma espécie de oposição, ou, pelo menos, um contraste: a psicanálise acentua a fantasia e, em função disso, a implicação subjetiva que ela comporta, muito mais do que o suposto automaton do traumatismo que o discurso dominante postula em detrimento de qualquer responsabilidade.
é verdade que o campo do que se intitula como sendo o do traumatismo excede de longe aquele do qual se ocupam os psicanalistas. No fundo, o traumatismo é um dos nomes que podemos dar ao horror do mal-estar quando ele vem de fora, de surpresa, sem que se possa imputá-lo ao sujeito que sofre dele as conseqüências, com horror. Em função disso, é referido a um real que assalta o sujeito, um real impossível de antecipar ou de evitar, dito de outro modo, um real que exclui o sujeito, sem relação nem com o inconsciente, nem com o desejo próprio de cada um, um encontro com o real e que o sujeito ?não agüenta?, como se diz, que deixa seqüelas, como as tantas marcas que cremos inesquecíveis.
é longa a lista dos traumatismos da qual a psiquiatria se ocupa hoje. Primeiro os traumatismos de guerra: a guerra de 14-18, de 30-45, a guerra do Vietnam, do Golfo, o conflito do Oriente Médio e, infelizmente, podemos acrescentar ?etc?... Depois, há os traumatizados do terrorismo, os traumatizados de atentados sexuais, da violência urbana e, evidentemente, os das catástrofes naturais. Mas nesse último âmbito há alguma diferença. Com a guerra e o sexo, há a implicação do registro do Outro e de sua obscura vontade, mas com as catástrofes naturais, como inundações, erupções vulcânicas, os tremores de terra, surge o que poderíamos chamar de o mais real do real pois exclui todo e qualquer sujeito. Entre os dois seria importante ainda classificar as catástrofes nem tão naturais, como aquela de Chernobil, nas quais se coloca a questão da responsabilidade.
Impressiona o fato de que a sociedade, curiosamente, se oferece como um Outro reparador, pelo viés de seus representantes nos diversos níveis do coletivo. Se vê logo em nome de quê: de uma solidariedade que se quereria mundial, e é espantoso constatar que o abandono do sujeito moderno ? tornou-se banal dizer que ele vive num mundo sem Deus ?, fomentou esta compensação que eu chamaria de excessivamente humana... A morte de Deus registrada, a noção do destino transformada em golpe de uma inconsistência certeira ? me refiro aqui ao destino tal como existia na Antigüidade e que está no fundamento da perspectiva trágica ? e suplantado pelo sentido da contingência, ainda se mantém, no entanto, como o que Lacan chamava de contabilidade universal a se inscrever no grande livro da memória leiga. Assim, numa cultura sem Outro ou, pelo menos, em que o Outro se fragmenta e se torna inconsistente, a solidariedade coletiva se oferece como um Outro de substituição, reparador derrisório sem dúvida, mas, mesmo assim, compensador e consolador do non sense real.
Esse processo se estende e excede a questão do traumatismo: conta-se com as solidariedades humanas como suplência à inconscistência do Outro e à crise generalizada do universal. Isso é muito sensível no nível ético: as éticas contratuais que abundam hoje se baseiam sobre o acordo da comunidade ali onde o Outro falta. Quer dizer que ali onde o real subjuga sem consideração pelo sujeito, alguma coisa se fomenta como suplência, um Outro outro, outro que não é o bom e velho Deus. Parece, em todo caso, que, os traumatismos foram multiplicados. Isso quer dizer que as causas de horror crescem com o desenvolvimento da civilização? Nada mais seguro.



O discurso tela.
Le discours écran

Ou talvez os recursos dos sujeitos, quero dizer, seus recursos de discurso, decrescem com o aumento da ciência e do capitalismo liberal que a condiciona? Pois o discurso que preside aos valores, aos gostos e às satisfações próprias a uma cultura é sempre discurso-tela, que, tal envelope protetor, interpõe seus semblantes e sua ordem entre os sujeitos e o real. Donde a tese de Lacan, do sonho generalizado no casulo do discurso, sonho do qual não se acorda, sem despertar para o real o qual, a partir daí, só pode se aproximar sob forma de pesadelo.
A multiplicação dos pesadelos na modernidade é um sinal do afundamento do barco do discurso e de que não é tão fácil fechar os buracos. Quando uma cultura oferece as bases das significações estáveis, compartilhadas por todos e nas quais se ordenam os laços sociais, os sujeitos são bem pouco expostos ao real, neutralizando-se suas irrupções as mais brutais com o envelope de sentido que forja o discurso. Mas quando o Outro se mostra inconsistente, quando a perda do Um unificador é consumida, como foi o caso na aventura do século XX, então há troumatisme , como dizia Lacan, e todas as ocorrências extremas do trop (demais), o a-mais de violência, de abuso, de riscos, de horror etc. são sucetíveis de fazer traumatismo ou, se quiserem, tropmatisme.
Podemos constatar, aliás, que nos séculos anteriores, as grandes catástrofes coletivas, não importa de que ordem tenham sido, sempre foram um estímulo potente para o pensamento ? a título de tapa-buraco, evidentemente. Penso no tremor de terra de Lisboa, em 1755, que inspirou Voltaire, mas também no naufrágio do Titanic, que recentemente voltou à memória pela via do cinema, e finalmente no trabalho de Ernst Jünger, que tinha então 18 anos, quando desenvolveu seus prognósticos quanto a nossa civilização da técnica. Também se vê que quando um discurso se sustenta solidamente, a fala pode fazer valer seus mandamentos até mesmo no campo do gozo. Ele se antecipa ao desmoronamento e sublima os pavores e tremores em heroismo, ou ainda, repara, ao contrário, no a posteriori, a intrusão do impensável. Aí o discurso é um pára-traumatismo.


A metáfora do horror.

A arenga do rei Henry na peça de Shakespeare, intitulada The life of King Henry the Fifth, é um paradigma remarcável do poder de acalmar o real que um discurso consistente confere ao verbo. Refiro-me ao ato IV, cena III.
Lembro brevemente o contexto da arenga. é véspera da batalha de Agincourt, no campo inglês. As forças são tão desproporcionais que o desfecho parece certo. As cenas precedentes haviam enquadrado a situação: são cinco contra um, cinco franceses que ainda não haviam lutado batalha, contra um inglês que chegava exaurido da tomada de Harfleur. A atmosfera dessa vigília no campo inglês é dada pela cena II que se passa no campo francês e que termina com a seguinte observação sobre os ingleses: ?Eles rezaram e esperam a morte?. A cena III começa pela frase: ?Onde está o rei??, o que não deixa de me lembrar as observações de Freud sobre os fenômenos de pânico. Para um ouvido francês, rei rima, além disso, com desgoverno . Com efeito, é bem o desgoverno que se ouve nos clamores seguintes em que vibram inquietações e angústias. E todos, tremendo, se despedem uns dos outros para sempre .
Mas depois da arenga do rei, varridas todas as tristezas, cada um só aspira a uma coisa: correr para a morte, querendo mesmo encontrá-la... só, com o rei!
Há duas partes no desenvolvimento da alocução do rei: a primeira está no presente, ela fala ?eu?; trata-se do ?eu? régio que se endereça aos soldados; na segunda, se passou para o futuro, muito tempo depois da batalha.
A primeira parte, quanto às significações que ela desdobra, é um bom texto de retórica, para dizer simplesmente ao primo Westmoreland: ?Você quer mais homens? Isso é um erro de julgamento?. No fundo, o que ele lhe diz é: ?Você não sabe contar!? e lhe propõe uma outra aritmética, uma espécie de aposta sobre a vida e a morte: se devemos morrer, mais vale sermos pouco numerosos; igualmente se devemos vencer, seremos menos numerosos para dividir a honra. Em ambos os casos ganhamos, é o contrário da escolha da alienação. A retórica do rei Henry é um pouco como aquela dos cognitivistas modernos que crêem atacar o medo do fóbico mostrando seu erro de julgamento! Como se ele não compreendesse que o primo Westmoreland está com medo de morrer, simplesmente, e ele lhe diz: ?Conte melhor e você não terá mais medo!?. Evidentemente não é o que opera, e seria sem efeito se, desde o início, não tivesse proferido o significante mestre desta arenga: a honra, outro nome da glória. é a carta mestra que o rei utiliza contra um outro mestre, absoluto, a morte: a expressão ?marcado para morrer? cai e é perfeitamente perceptível que tudo gira em torno da questão de fazer prevalecer sobre o pavor da morte o significante da honra, que segue imediatamente.
Há mais nessa primeira parte. Dizia que ela falava ?eu?. Com efeito, o rei se coloca em jogo como sujeito e não somente como significante. Isso é tão verdade que ele evoca seus gostos particulares, sua indiferença pelo dinheiro, pelas roupas, enfim, tudo o que constitui os bens desse mundo, e seu desejo único, maior, pela honra. Ele oferece um desejo decidido ao contágio, o de fazer passar a glória ao primeiro plano. Dito de outra forma, ele se coloca como exemplo ? já falei disso em outra ocasião ?, o exemplo de alguém que, sem se preocupar com sua própria pessoa, avança sem medo para a batalha que lhes promete o desastre. Mais ainda, ele convoca o que ele chama ?o apetite pelo combate? , apelo direto à pulsão, com o qual faz uma oferta implícita: quem gostaria de ser ?meu camarada de morte?? Não nos esqueçamos que é o rei quem fala e não um qualquer. Aí começam a se acumular os meios da retórica que faz as vezes do significante mestre, da indução do desejo, estimulando as pulsões e a fraternidade imaginária!
A segunda parte da arenga, é outra coisa bem diferente. Com a frase: ?Esse dia é conhecido como a festa de São Crispim?, entra-se na perspectiva da história e das datas memoráveis. A partir daí, o rei fala do ponto de vista do futuro, da prosperidade, da memória universal. O ?eu? heróico desapareceu, no seu lugar se evocam os ?nomes?. ?Então nossos nomes...?. Os nomes e algo mais, o que designa por band of brothers . Os nomes ele os enumera, são os dos nobres lordes, evidentemente, enquanto que a feliz band of brothers, inclui os soldados de condição vile.
Aqui a mudança de perspectiva é completa. Já se está na hora do jultamento da história, como o do juízo final. é esse o termo que me parece o mais apropriado para esclarecer a fala pois, por mais que retumbem os ?Viva Deus?, ?Por Jupiter?, ?Por Deus? etc., o julgamento invocado está mais para leigo. Ele não diz ?Deus nos vê?, mas ?Os homens não nos esquecerão?. é o veredito último da memória humana, com toda promessa que comporta, que olha do horizonte dos tempos. Há aí alguma coisa de sermão fúnebre antedatado. E enquanto que a primeira parte terminava com ?camaradas de morte?, no final da segunda, os mesmos se tornam ?camaradas de imortalidade?: ?do dia de hoje ao fim do mundo?, diz o rei, já que se estava numa época em que se podia imaginar que a memória dos homens iria até o fim do mundo. Talvez se seja hoje um pouco menos ambicioso.
Os nomes então substituiram o ?eu? único e é prometido, àqueles da band of brothers, os soldados que não são nobres e que poderíamos chamar de Joãos ninguém, se lhes promete primeiro a fraternidade na imortalidade e, depois, que isso os enobrecerá com honra.
Trata-se, portanto, de uma democracia post-mortem, de uma igualdade para além túmulo. é um tema bem freqüente. Pensem em Bossuet e em seus ?Sermões fúnebres?. Numa sociedade tão desigual em que há os grandes da nobreza e os pequenos de condição servil, Bossuet não cessa de fazer vibrar o tema de uma outra igualdade, não a da honra, mas a da igual pequenez diante de Deus e da morte. Aqui é a igualdade na glória imortal daqueles que terão desafiado a morte.
Assim se vê como foi construído, e sobretudo o que está em jogo nesse belo exercício verbal. A performance retórica não esconde seu objetivo, o de manobrar a pulsão. E mesmo a pulsão a mais forte de todas, aquela que Freud nomeou pulsão de auto-conservação, a pulsão de vida em estado puro, e que tantas vezes fracassa diante dos votos de morte tão afirmados. Trata-se nessa arenga de conquistar um limiar do princípio do prazer, irmão da pulsão de auto-conservação, em direção a um sacrifício consentido. A operação é muito precisa. Visa uma substituição de gozo. Trata-se de trocar todos os prazeres da vida e a vida ela mesma, por um outro gozo, o de morrer para a glória e, além disso, com seu rei. é muito impressionante constatar que no teatro, a cada vez que nos aproximamos da morte voluntária, os prazeres da vida são evocados. Pensem em Antígona quando ela sacrifica tudo pelo sepultamento de seu irmão; nesse momento ela pode chorar todas as alegrias a que renuncia, seu esposo, o filho, a futura família que jamais terá. é o mesmo espaço entre duas mortes, e nas cenas precedentes Shakespeare evoca várias vezes a esposa, a noiva, os filhos, todos os que irão perdê-los e que vocês já perderam. Não é excessivo dizer que esta arenga visa realizar uma metáfora pulsional, a saber, uma substituição do gozo de morrer pelo gozo de viver. E ela a obtém.
Esta metáfora pulsional é conquistada pela via de uma outra metáfora, a significante. A que eu evoquei no início e que substitui o significante da honra ao da morte, para que a aspiração à imortalidade post-mortem, se posso dizer, vença o pavor da morte. Cada um que ouve tal arenga é tocado em nível de seu ?eu sou?, para retomar a expressão no sentido que Lacan lhe dá na ?Lógica da fantasia? (Lacan, 1966-7). A eles ela se dirige enquanto identificáveis e identificados. Ela convida o soldado, o herói guerreiro, ao ?um por todos?, não do homem como sexuado, mas do ?todos? na morte gloriosa e que é tão fálico quanto. é o ?por todos? dos que vão morrer sob a injunção do significante mestre. Neste âmbito, o termo band of brothers é indicativo pois todo grupo repousa sobre o um-entre-outros, igualitário, e é preciso ver que o tema aqui tratado sob o modo heróico é o mesmo que, de forma bem amortecida e degradada, foi perpetuado na idéia de que o exército, a começar, o serviço militar, faz de alguém um homem, mais seguramente do que o sexo. Que se renuncie hoje a isso, é motivo para reflexão. Dizer que esta arenga se endereça a seus ?eu sou identificado?, é também dizer que ela procede de uma operação de recalcamento que obtura, ou melhor, recobre a questão de saber o que cada um é em sua singularidade de seu desejo próprio, e que visa um ?eu sou? homogeneizado. Se vê aí em exercício, se posso dizer, a conexão do significante mestre com a fantasia. O rei Henry, empurrando para eles o significante da honra, os coloca sob um olhar, o da prosperidade, que assume o lugar de objeto. Essa operação se inscreve facilmente no discurso do mestre em que o significante mestre toca precisamente o nível libidinal e consegue homogeineizar as fantasias.
Gostaria de me deter ainda na questão das pulsões mobilisadas nessa arenga. Primeiro para chamar a atenção sobre a expressão que já sublinhei: ?apetite pelo combate? , diz o rei. Ele não fala em coragem para o combate, ele se refere ao apetite, eis a referência pulsional na luta. Se ele exalta o gozo de morrer, como eu disse, ele também convoca um outro, o da luta viril, e mais precisamente do corpo a corpo mortífero. Eis onde ressoa a libido homossexual em toda esta exaltação da band of brothers, da camaradagem na vida e na morte. A confirmação se mostra na própria peça, um pouco mais longe, na cena VI do mesmo ato IV, em que Exeter relata a morte do Duque de York e de seu camarada Suffolk. Ele é descrito caído na relva e, coberto de sangue [e beijando os lábios de Suffolk ao morrer ].
Seria sublinhar demais o quanto esse erotismo homossexual e macabro ultrapassa de longe o significante da cavalaria que os unia? Não creio, e isso evoca a observação de Lacan que dizia, no final de seu ensino, que a saída de uma batalha sempre é imprevisível, pois tudo depende do lado de que se goza o mais-de-morrer. Talvez isso só seja sustentável para os tempos em que se lutava corpo a corpo, mas essa frase sempre me atordoou e, finalmente, relendo a cena de Henry V, surge a percepção de sua verdade. Notem, aliás, que se o contexto shakespeariano está bastante distante de nós, os atentados suicidas de hoje o reatualizam de alguma forma.


A destituição em sua salubridade.

O século XX pôde ir ainda mais longe no uso do discurso que recalca o real. Todos os evangélios que anunciavam futuros promissores, através dos quais gerações inteiras foram estimuladas em direção ao sacrifício poderiam ser aqui evocados. Mas prefiro ater-me ao que poderia ser um contra-exemplo. Falo de Ernst Jünger, contemporâneo de todo século, pois viveu 103 anos, tendo falecido em 28 de março de 1998. De volta do inferno das trincheiras da guerra de 1914, publica, em 1922, Der Kampf als inneres Erlebnis, recentemente republicado . Naquele ano, Karl Schmitt publicava suas considerações sobre a soberania , Hitler ainda não era nada e o bolchevismo ainda não revelara sua verdade. A obra saudada por Caillois e Bataille foi rapidamente esquecida ? por demais perturbadora, sem dúvida. De fato, ela continua, em certo sentido, irrespirável, pelo menos para quem ama a paz, e Jünger é bem suspeito de ser politicamente incorreto...
O que me interessa, no entanto, nesse homem muito jovem, arrancado como tantos outros da candura da belle époque ? faz 18 anos na véspera da guerra ?, para além do que ele diagnosticou como uma fratura histórica radical , é sua resistência pessoal ao traumatismo. Sem dúvida foi necessário para isso um certo temperamento, mas tomo aqui o termo resistência no sentido forte de uma vontade. Vontade que se recusa a fechar os olhos, tanto quanto ser vítima ou se dobrar frente ao acontecimento. Há aí como que um postulado subjetivo, íntimo, uma ?obscura decisão de ser? que comanda um fazer frente incondicional, e que reencontramos em todas suas obras ulteriores. Ele a exaltara como ?o anarca?, o indivíduo que não se intimidaria com nada, nem com o Outro, nem com o real. é a versão salutar de um abandono assumido sem desespero, mesmo num mundo sem Deus, ?Que espécie de homem se deve ser para se sentir ultrapassado por sua época? ? , pergunta.
Com efeito, esse livro dá o testemunho de uma operação exemplar: a que forja um novo discurso, aqui premonitório, para uma trasmutação de um real. Para o jovem Jünger, esse real era aquele dos horrores da guerra, do sangue, da angústia, da própria morte, e ele responde, com um naco hegeliano, postulando que a aniquilação em marcha traz promessas abissais em que as forças da procriação elaboram os ?prodígios do futuro?. Então pode colocar do lado das figuras do santo e do sábio a do guerreiro moderno, tão destituído e aplicado quanto o de Paulhan .
Hoje sobressaltamos porque esse discurso pára-horror parece justificar o combate, não é nem prgressista nem pacifista ? apesar de haver pacifismo em Jünger ? e, além disso, a seqüência histórica da Europa o esclarecem com um efeito sinistro a posteriori. De fato, Jünger nada tinha de fascista: ele exalta demais o indivíduo deixado só face às contingências e surpresas da história ? no que, aliás, ele é um precursor das devastações de nossa modernidade ?, para então ser colocado no pacote das docilizadas agremiações do nacional-socialismo. Se não fossem os refinamentos de sua escrita, seu modo de confrontar a pulsão me evocariam a barbárie. Bárbaro ele é, de todo modo, quando ele testemunha, com uma lucidez que só se espelharia na do melancólico se ela não se conjugasse com uma exaltação quase dionisíaca do erotismo do combate, do gozo mortal do corpo a corpo, da estética do campo de batalha, do desfile maquínico dos exércitos em marcha e, também, de uma liberdade última face à morte iminente ? a mesma que evocava Teilhard de Chardin ao dizer: ?A experiência inesquecível do front, a meu ver, é de uma imensa liberdade? . Segundo Jünger, ali as ?pulsões que ficaram tempo demais em diques por causa da sociedade e de suas leis, voltam a ser a única, sagrada e última razão? .

Vê-se, tal como no exemplo precedente, que a estranha segurança desse discurso pós-guerra ? não o esqueçamos ?, repousa de fato sobre dois pés: uma elaboração sublimatória metódica, conjugada a um espantoso consentimento às pulsões. Não está aí o paradigma do que pode proteger um sujeito do real traumático ou, se quiserem, um exemplo invertido das condições de fragilidade frente a esse real, pois mostra o duplo alcance do discurso, de um lado, tela, de outro, via de condução para as pulsões?



O discurso furado.

Paira uma ambigüidade sobre o uso que fiz até aqui do termo real. De uma parte, pode ser interpretado como todas as formas de gozos que Eros não canalisa e que escapam às regulações do princípio do prazer, referido a pulsões deletérias. é o real que designa a coisa êxtima, esteja ela do lado do sujeito ou do Outro. De uma outra parte, referi o real às grandes catástrofes que varrem as instalações humanas e que o discurso, evidentemente, não poderia tratar da mesma maneira.
Neste último contexto, sofremos da falta do Outro pois O Deus vingador que se utiliza das calamidades para castigar os pecadores já se foi. Procura-se um substituto do lado dos destruidores do planeta, os que furam a camada de ozônio e outros responsáveis irresponsáveis mas isso não tem equivalência para o consolo.
Quanto à pulsão, para aquém dos limites do proibido, sempre que ela não é sancionada em suas formas irredutíveis, ela é domesticada nos usos de uma cultura ou sublimada em supostas formas nobres. Em ambos os casos é justificada..., seja por hábito ou por valores instituídos ? direito de um sexo sobre o outro, devoção à religião, à Pátria, à raça, mas também, competição profissional ou esportiva, usos diversos etc. Foi necessário um choque das culturas heterogêneas, especialmente depois do século XVIII, para que se percebesse o que é essa justificativa: um artifício de discurso, no qual se desvela o sem-fundamento de toda legitimação das formas prontas da pulsão. Ora, a contingência dos gozos permitidos num dado laço social, redobra o non sense da fragilidade moderna frente às transgressões de uma violência não menos insensata.
Não existem extremos no horror que um discurso consistente não possa aprisionar. Senão vejamos: os discursos que justificam as guerras; os que justificam impavidamente em seu ódio as purificações étnicas, os loucos por Deus, todos os kamikazes das supostas boas causas! E o próprio Apocalipse que fez tremer os séculos, só aproximava o real de longe, quero dizer, em pacote de sentido: o do castigo que sustenta o Outro, pois ainda testemunha o amor ciumento do Deus único pela criatura.
Hoje, no discurso furado de nosso tempo, a regulação dos laços sociais se dá sem mestre, sem o um unificador do ideal; as previsões do mercado e das regulações econômicas presidem ímpares a homogeneização dos modos de vida nas formas de uma rotina instrumentalizada de acordo com os objetos a consumir. Em seu Seminário III, Lacan evocava no contexto do desencadeamento de uma psicose, um tipo de sujeito que vivera anos a fio como uma traça mite (? verificar) em seu buraco, tendo como única proteção contra o troumatisme da foraclusão, as regulagens fatuais de uma impávida rotina. Lembra uma personagem do tipo Simenon, enraizada na reiterada repetição dos pequenos gestos de uma vidinha de bairro, sedentária. A fragilidade do sujeito moderno é dessa ordem, mesmo se aparentemente é o contrário porque ele se movimenta, viaja, sempre ligado nas imagens e vozes do universal. No entanto, por ser menos pobre, sua prótese não é menos imaginária. De seu caleidoscópio que espelha múltiplas imagens, variadas informações, incitações de todo tipo, vozes rivais e dissonantes, sua prótese faz tela ao real mas para dar conta disso, sua profusão está por demais espalhada, numa infinitude impossível de bastear. A guerra sempre foi devoradora de homens. As de hoje, cada vez mais planetárias e maquínicas, na ponta das maravilhas da técnica, seriam ainda mais intoleráveis por serem mais mecanizadas? Ou não seria dizer melhor que atualmente as justificações discursivas, com todas as suas maiúsculas, soam demasiado estranhas aos ouvidos desse não tolo que é o sujeito moderno? Demasiado, em todo caso, para dar sentido ao horror. Empacotado com palavras e imagens fora da sintaxe, privado da gramática das concepções de mundo que asseguravam o passado, e com as quais se justificavam as cobranças bélicas, o sujeito da época dos clips está cada vez mais exposto às surpresas do real e, concomitantemente, cada vez mais desmunido diante dele. Portanto, traumatizável mais do que nunca.
Ora, o traumatizado nos instrui sobre a memória, ele que é assombrado por um encontro que não pode esquecer, que o assalta de noite se ele escapa de dia ? Freud o havia notado ?, que freqüentemente o deixa sem trégua, absorbendo a totalidade de sua libido e de seus interesses, em proveito de um pavor e de uma angústia que não cessam. Esse esquecimento teria podido interessar muito àquele que acreditava ter descoberto que os histéricos sofriam de reminiscências, ele antes de todos, aquele que começou concebendo o inconsciente como uma memória. Mas, de fato, o traumatizado não se lembra, na realidade ele é invadido por imagens, barulhos e sensações do instante traumático. O impossível esquecimento é uma falha da memória, no sentido em que uma memória é inscrição e em que lembrar-se é reconhecer-se nos sinais que podemos convocar ou deixar de lado. Enquanto tal, o traumatismo tem a estrutura da foraclusão. A homologia de seu estatuto em relação com o da alucinação não escapou tampouco a Freud. Excesso de real tão impossível de suportar quanto impossível de evitar, que imprime caretas no perceptum e que, no entanto, se mantém suficientemente desamarrado do simbólico para produzir a rejeição de toda atribuição subjetiva . Trata-se do real foracluído no sentido da não inscrição, da falha da Bejahung, como dizia Freud. Donde se pode compreender que um dever de memória possa se impor na história, ali onde se localiza a ponta de horror a mais inesquecível, penso evidentemente na Shoa e nos diversos genocídios que marcaram o século XX. Trata-se de reintroduzir o impensável nas redes de um discurso de maneira que uma comunidade possa se reconhecer em suas faltas e infortúnios.
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A neurose, traumática

No entanto, todo sujeito não é um tramautizado original segundo a psicanálise ? Essa questão se apresenta na origem mesma da obra de Freud e é solidária da interrogação sobre a causa dos sintomas da neurose e seu destino possível, no final do tratamento. Em ?Inibição, sintoma e angústia? (Freud,1926), quando Freud retoma o problema da angústia e de sua conjunção com as situações traumáticas, termina o capítulo IX com uma confissão de impotência dizendo: ?[...] reencontramos de forma inesperada o enigma que se colocou tantas vezes para nós: de onde vem a neurose? Qual é sua causa última e específica??
Foi tortuoso o caminho de Freud nessas questões. Podemos acompanhá-lo desde a correspondência com Fliess até seus últimos textos. No início, acreditando encontrar o traumatismo, ele apresentava a fantasia, ainda sem saber. A carta 69, de 1897, é o ponto de virada de uma primeira decisão teórica. ?Não creio mais em minha neurotica?, diz Freud. Essa neurotica propunha que na origem do sintoma histérico haveria uma quebra traumática da sexualidade a partir da sedução de um adulto. Mas o traumatismo aqui só era máscara da fantasia, impondo-se como fantasia do Outro; a psicanálise, desde aquele momento, recalcou a teoria do traumatismo com a da fantasia, mesmo se essa guerra nunca foi realmente vencida, de maneira que a primeira doutrina nunca cessou de retornar de formas mais ou menos felizes. Com Rank, Ferenczi e, mais recentemente com um cirurgião, Jefferson Masson, que retoma a teoria da sedução para dizer que Freud a teria abandonado pelas piores razões...
A questão põe em jogo arestas éticas evidentes pois, conforme a maneira de responder a ela, se admite que o sujeito seja mais ou menos responsável. O acento quando colocado sobre a objetividade do traumatismo sexual nos interessa especialmente porque faz do sintoma neurótico o resultado de um acidente da história, de uma das contingências da vida na qual, no fundo, o sujeito, mesmo nuançado, é mais vítima do que parti pris do encontro. Quanto mais se acentua a causalidade traumática, mais se inocenta o sujeito; quanto mais se descortina uma causalidade não traumática, maior a parte atribuída ao sujeito. Do quê? De uma responsabilidade paradoxal de seus próprios sintomas que, no entanto, ele sofre ou crê sofrer? Compreende-se de passagem porque o traumatismo generalizado não é simpático ao psicanalista: é que ele permite ao sujeito de tirar o corpo fora, negar sua própria participação, quando o reconhecimento de sua implicação subjetiva no que ele sofre é a condição sine qua non de sua entrada em análise. Mas essa alternativa é por demais simplista e precisamos voltar às complexidades freudianas.
Na realidade, Freud nunca abandonou completamente a causalidade traumática. Para além de seu interesse pelas neuroses de guerra, é preciso ressaltar o espaço que dá ao traumatismo no final de sua obra, desde 1926 até ?Moisés e o monoteismo? (1937-9) em que reafirma a origem traumática da neurose, ao preço de uma outra definição do traumatismo.
A partir do momento em que, para a surpresa geral, vira a teoria da angústia ao avesso (1926), Freud reconhece que ?é a angústia que produz o recalque e não, como o pensava anteriormente, o recalcamento que produz a angústia? . A partir desse momento, Freud pode conceber a angústia como afeto do real, o real enquanto tudo o que é inassimilável à realidade psíquica. O momento traumático ? traumatische Moment - , passa a ser definido como encontro com o perigo frente ao qual o sujeito, desmunido, privado dos meios necessários para as operações do princípio do prazer, é presa de uma excitação intratável, a experiência de desamparo, Hilflosigkeit, diz Freud. Isso já não tem nada a ver com a concepção da sedução traumática do início da obra.
Observo, inicialmente, que o termo desamparo é definido aqui de forma econômica, em função da relação entre uma quantidade de excitação e o que Freud chama de ?forças? do sujeito, a saber, sua capacidade de suportar, canalisar e redistribuir essa excitação. A partir daí, concebe-se que não há objetividade absoluta do traumatismo, pois se começa a contabilizar os recursos do sujeito, e isso se verifica em toda experiência, o que nossa modernidade esquece quando postula os traumatismos standard. Pode-se deduzir também a justa orientação dos tratamentos possíveis: mobilizar os recursos simbólicos próprios a um sujeito dado e que teriam maiores chances de sucesso. Ernst Jünger o ilustra sem outra terapia que não a escrita, o que o faz um grande instrutor no assunto para nós: o que traumatiza será sempre relativo ao que rasga tanto o discurso quanto aquele que lhe responde.
Sublinho em seguida a implicação aqui de uma distinção precisa do real e do Outro, mesmo se Freud não manipula este último, pois o desamparo se define sem referência ao Outro. é claro que o desamparo também pode vir do Outro, mas sua natureza condiz com o fato de que ele responde a uma quantidade de excitação intratável e que as vias do discurso ? Die Wege, diz Freud ? não conseguem tamponar. A real Angst é angústia do real. Freud se arma com uma definição muito geral, a mais geral possível pois, ao colocar como fator comum esse termo do desamparo, que dá o traço unário da série das angústias fenomenologicamente as mais heterogêneas, consegue unificar campos tão heterogêneos quanto são entre si o perigo biológico ? aquele do nascimento, por exemplo ? e o perigo psíquico...
Enfim, em terceiro lugar e mais importante ainda estão as diversas angústias de perda atestadas pela experiência da neurose ? perda do pênis, perda do objeto nutriente, perda do amor, perda da proteção do supereu. Elas se ordenam como série das angústias de castração assim que se distingue do falo um significante que não é o órgão; todas essas angústias, aparecem, segundo Freud, como deslocamentos da angústia fundamental frente à escalada da excitação em detrimento dos objetos que condicionam o apaziguamento da excitação. é notável que, citando Ferenczi, Freud (1933) aplica esse esquema ao pênis ele mesmo, valorizado somente porque condiciona a união com a mãe, dito de outro modo, porque protege da Versagung traumatizante da pulsão. Eis distinguidas e articuladas, pelo menos de forma aproximada, as angústias do menos (- phi) e as angústias do excesso de real. Sem essa distinção, aliás, não seria possível compreender a angústia do esquizofrênico, para quem ?todo simbólico é real?, menos ainda a do autista.


O inconsciente é traumático?

Em 1967 Lacan dizia que o inconsciente ?não é perder a memória mas é não se lembrar do que se sabe? . Um saber, portanto, mas que não representa o sujeito. Um saber que se impõe nas repetições e nos sintomas indecifráveis, uma memória na qual o sujeito não se reconhece. Nesse sentido, as forçações do inconsciente não são menos violentas para o sujeito do que as do real.
A hipótese freudiana conecta essa memória com a infantil e com as cenas originárias de gozo traumático que o sujeito esqueceu ? recalcamento. De fato, como o gozo não seria traumático? Ele que jamais se inscreve no programa do discurso e que só se revela e só é encontrável na surpresa? Em 1939, Freud retoma isso em seu Moisés. O texto me parece ser de grande interesse em função de sua data tardia ? trata-se, praticamente, de sua última mensagem sobre a neurose e é possível nele ainda constatar a origem traumática, sem ambigüidade. Os traumatismos que estão na origem dos sintomas são, diz ele, ?ou experiências que tocam o próprio corpo do sujeito, ou percepções que afetam o mais das vezes a visão e a audição; trata-se portanto de experiências e de impressões? da primeira infância e que Freud evocara tantas vezes com a série-tipo: ameaça de castração, seduções e cena primitiva, sempre presentes no coração das elaborações fantasmáticas do sujeito.
No fundo, essa tese faz do inconsciente alguma coisa como um estigma do passado, memorial de experiências traumáticas e indutor de gozos futuros, fixando formas, marcando e moldando, inscrevendo no simbólico e no imaginário os acidentes de um encontro ele mesmo impensável e inassimilável.
Vê-se a vesguice: o inconsciente, na medida em que assegura a passagem do real traumático do gozo para o simbólico, é tela que recalca o real, como todo discurso. Mas, na medida em que transfere o afeto e o inscreve ?com letras de sofrimento? que atormentam o sujeito, conforme a expressão de Lacan, ele pode ser, ele mesmo, traumático, a partir do que dele emerge fantasmática e sintomaticamente.
Lacan brincava que os neuróticos, tão dados às queixas e à angústia nas situações comuns, se mostram normalmente insubmergíveis nas grandes catástrofes ? ele pensava na segunda guerra. O próprio Freud observava quão freqüente o infortúnio real tem efeitos terapêuticos sobre os sintomas e acrescentava que era como se o ser falante tivesse necessidade de uma certa dose de sofrimento. é que o inconsciente do neurótico pode muito bem incomodá-lo, ele jamais falha em lhe dar as vias de condução do seu gozo. Donde a fórumla de Lacan em Televisão, ?o sujeito é feliz », o que quer dizer que ele o é por definição.
Em matéria de parceiro, o neurótico está sempre já servido, pouco aberto portanto a um encontro verdadeiramente inédito, não recebendo nada do real que não venha do filtro de seu discurso inconsciente. A própria surpresa não é seu forte, é sem dúvida por isso que ele sonha com ela, ou ainda aí ele se supreende de encontrar suas próprias marcas, Freud o viu bem! Para o sujeito psicótico, ao contrário, quando a foraclusão se descobre, a surpresa é iminente e também assustadora!
A felicidade do encontro é sempre boa desde que o sujeito esteja armado de uma fantasia que sature o vazio . Ela garante o sempre mesmo encontro com o que espera: o mesmo mais-de-gozar, o mesmo modo de satisfação-insatisfação. Filtrando as contingências dos encontros conforme sua conveniência, a fantasia é o que protege dos maus encontros do traumatismo pelo real. Ã?s vezes, é claro, essa segurança é um peso para o sujeito, sabemo-lo bem demais, mas ainda assim é uma segurança contra o real.
Isto é a tal ponto verdade que podemos nos perguntar seriamente se um sujeito feliz, armado com sua fantasia para se proteger de toda eventualidade, se tal sujeito é traumatizável ou se ele não seria mais impermeável a tudo o que não está no programa de seu inconsciente. é aí que percebemos que, por mais brutal que seja, um encontro só pode ser traumático no caso de haver uma participação subjetiva, uma ?interiorização? do perigo, dizia Freud. Não é suficiente que alguma coisa caia sobre as cabeças de vocês para que um pavor se instaure ou para que uma marca indelével se inscreva para sempre. é como se o trauma original operasse na forma de vacina contra o real, produzindo um sujeito inapto a receber novas marcas. Isso também é uma questão para o tratamento analítico, saber como, em que condições e até onde a manobra analítica pode levar, não digo traumatizando o sujeito, mas, pelo menos, jogando suficiente com a sutura para produzir essa vacilação da segurança fantasmática da qual Lacan falava em 1967.
Seja como for, concebe-se que o sujeito esteja implicado mesmo nos traumatismos que vêm do real: horrores da guerra, terrorismo, atentados sexuais, catástrofes diversas. é porque sempre há dois componentes e dois tempos do trauma: o primeiro, o do acontecimento, o golpe do real se posso dizer; o segundo, o só depois, as seqüelas. Poderíamos situar o tempo do impacto como um momento de foraclusão, já o disse, encontro com um real que não tem correspondência no simbólico, que surge fora das coordenadas de toda e qualquer antecipação, tanto nos encontros infantis originais quanto nos grandes traumas coletivos. As repercuções para o sujeito são de uma outra ordem e variam enormemente conforme a leitura que ele faz do real. O toque do inconsciente aqui não falha jamais. Isso porque é muito difícil para o ser falante de não ser crente e de não pensar, como dizia Lacan, que as coisas são tramadas. Pouco importa o nome que se dá ao Outro suposto trama, Deus, o inconsciente, ou os responsáveis: o resultado é a negação do non sense do real, o qual é convertido em intencionalidade obscura tão logo se dê o encontro. Quando o sujeito reconhece, por exemplo no acidente, a mão de um Outro nocivo, ou que lê em sua sobrevivência uma graça do destino, isso faz uma grande diferença.
Assim, concluo: o traumatismo, em seu impacto, é real; as seqüelas são do sujeito. Os psicanalistas, portanto, têm sua palavra a dizer e podem receber muito bem os traumatizados, recebem tantos traumatizados da origem e que são todos os seres falantes. Quanto a isso, é urgente uma oposição ao discurso determinista que pretende estabelecer uma correspondência biunívoca entre uma causa traumática e suas conseqüências sintomáticas pois, entre os dois, há o inconsciente. Mantenhamos as duas dimensões para compreendermos a extensão da virtualidade traumática. De um lado se conjuga ao fato de que o simbólico não recobre todo real, do outro, o inconsciente-tela é ele mesmo ferida inscrita no âmago do ser.


1 Tradução de Sonia Alberti, publicada no livro: ALBERTI, S. e CARNEIRO RIBEIRO, M.A (orgs.) Retorno do exílio: o corpo entre a psicanálise e a ciência. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria, 2004. [email protected]
2 Penso em Rorty nos Estados Unidos, em Habermas na Alemanha.
3 N.T. Lacan se utiliza do jogo de palavras em francês para traumatismo, quando retoma a distinção freudiana entre o traumatismo na neurose histérica e na obsessiva. Na histeria há um traumatismo por um gozo a menos que faz furo, daí o neologismo frances troumatisme (trou = furo) e, na neurose obsessiva, tropmatisme , um excesso de gozo, um gozo a mais (trop = excesso).
4 NT : Rei = roi ; désarroi = desgoverno, angústia, desespero.
5 NT : O texto original contém aqui a arenga que optamos por não traduzir.
6 NT : Provavelmente a autora faz referência aqui à expressão na tradução francesa da passagem em que o
rei Henry, ao se dirigir a seus soldados, convida para partirem àqueles que não têm estômago para a batalha.
7 NT : turma de irmãos.
8NT: em inglês, no original. Vil, em português.
9Idem.
10 NT : optamos por não traduzir a passagem em Shakespeare cuja tradução francesa se encontra, no entanto, no texto da autora.
11 NT: observação minha para substituir e resumir a tradução da fala de Exeter.
12 Inicialmente traduzido para o francês sob o título A guerra nossa mãe, foi reeditado em 1998 por Christian Bourgois, sob o título La guerre comme expérience intérieure, com um excelente prefácio de André Glucksmann.
13 NT : Schmitt, Karl Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre der Souveränität. München ? Lepzig, 1922.
14 - Il dit : Ce qui se prépare ici, cest une bataille au sens dune époque toute nouvelle, La guerre comme expérience intérieure, éd. Christian Bourgois, Paris 1997.
15 - Ernst Jünger, opus cité, p. 164.
16 - On sait que Lacan en fit grand cas.
17 - Citado por A. Glucksmann, op.cit., p. 16.
18 - Esrnst Jünger, op.cit., p. 34.
19 - Lacan emprega essa expressão a propósito das alucinações. NT: Perceptum: o percebido.
20 - Expressão também empregada por Lacan.
21 - Jutilise ici la virgule comme dans cette autre expression de Lacan : La psychanlyse, didactique.
22 - Sigmund Freud, Inhibition, symptôme, angoisse, éd. PUF, Paris, 1965, p. 27.
23 - Cf. Sigmund Freud, Les nouvelles conférences, IVème conférence. Dans lédition allemande S. Fischer, vol. I, p.528, dans la Standart édition, vol. XXII, p. 94. Je note que Lacan emploie lexpression linstant du fantasme, dans Position de linconscient, Ecrits, éd. du Seuil, Paris, 1966, p. 836.
24 - Jacques Lacan, Scilicet, n°1, éd. du Seuil, Paris, 1968, p. 35.
25 - Sigmund Freud, Lhomme Moïse et la religion monothéiste, éd. Galimard, Paris, 1986, p. 161-162.
26 NT: A autora se utiliza aqui do termo francês Bonheur, a felicidade, também a boa hora, na sua relação com a eutykhia como bom encontro, conforme Aristóteles.


LACAN, Jacques (1966-7) Le Séminaire, livre XIV, La logique du fantasme . Inédito.
SHAKESPEARE, William (1599) The life of King Henry the Fifth » in Renascence Editions. University of Oregon, 1999.



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