ANTROPOSMODERNO
Ilya Prigogine (1917-2003) assamento em brancas nuvens
Ulisses Capozzoli

Não é inteligente radicalizar nem deixar de reconhecer que vestimentas têm seu valor cultural. Mas aqui existem futilidades que tendem ao infinito, precariamente camufladas

Imprimir el artículo  |  Volver al Home





08/07/2003


Ilya Prigogine (1917-2003) assamento em brancas nuvens

Ulisses Capozzoli (*)
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/ofjor/ofc080720031.htm


A mídia abre espaço para assuntos triviais como roupas de chocolate (ou quase nenhuma roupa), em desfiles de moda.
Não é inteligente radicalizar nem deixar de reconhecer que vestimentas têm seu valor cultural. Mas aqui existem futilidades que tendem ao infinito, precariamente camufladas como \"cultura\".
O corpo humano nu ser motivo de atenção legal, envolvendo expressões policiais como \"atentado ao pudor\", dá uma medida da alienação e do puritanismo em que vivemos, apesar de todo o discurso trombeteado.
Nos ressentimos cada vez mais de liberdade crítica.
Estamos confinados a valores religiosos primitivos e danosos, como a idéia de que tudo que o homem toca torna-se contaminado. Como se fôssemos portadores de uma peste tipicamente humana.
Parte do ambientalismo reflete essa dificuldade de aceitação do humano ? da forma como, humanos, interagimos com o a natureza transformando-a e sendo transformados por ela.
Assim, retornamos a Ilya Prigogine. O professor Prigogine, uma das grandes inteligências contemporâneas morreu em fins de maio passado e sua partida não mereceu mais que uma pequena nota nas páginas dos jornais. Na televisão, onde a vida inteligente é cada vez mais rarefeita, não se falou uma única palavra. Certamente, boa parte dos apresentadores não poderia pronunciar seu nome sem engasgar com a própria língua.
A importância de Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química de 1977 por seus trabalhos envolvendo contribuições à termodinâmica longe do equilíbrio e à teoria das estruturas dissipativas, diz respeito a cada um de nós (à nossa presença no mundo, ao fato de nosso universo ser como é), apesar de parecem idéias distantes e incompreensíveis.
Uma das questões centrais envolvendo essas abordagens está no fato de a ordem poder emergir da desordem e as coisas não se comportarem de forma pendular, oscilando mecanicamente num vai-e-vem determinístico.
Para nós, brasileiros, certamente cabe uma leitura particular se for considerado o lema da bandeira nacional, onde, ao contrário do que propõe Prigogine, aparece a positivista e desacreditada expressão \"Ordem e Progresso\".
Sob esse enfoque, à primeira vista restrito às ciências da natureza, ganha uma dimensão nova agitações sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. A questão, aqui, não é discutir se há ou não oportunistas se aproveitando do movimento. Mas a essência que ele incorpora.

Porta de entrada

Não fosse a estrutura senhorial da propriedade da terra no Brasil, anacronismo que se estende para outras áreas da sociedade como legado de uma sociedade escravista, uma articulação como a do MST simplesmente não teria razão de ser. Portanto, não existiria.
Somos, socialmente, pré-científicos na compreensão de fenômenos dessa natureza. O que parece realista, prático, socialmente procedente, como ato de legítima defesa (a uma posse historicamente truculenta, em boa parte dos casos na pura coação, na boca do fuzil) são as milícias armadas organizadas pelas oligarquias rurais saudosas do tempo do pelourinho.
No antipositivismo do professor Prigogine aparece o que físicos e filósofos, entre outros, conhecem como a \"flecha do tempo\", um caminho por onde as probabilidades reduzem a pó as certezas deterministas, com aplicações que se espalham por todo o corpo da ciência, inclusive das humanidades.
De um modo geral, pode-se dizer que o professor Prigogine pregou, ao longo de toda sua vida como pensador, uma reconciliação do homem com a natureza, da ciência com a filosofia, como sugere especialmente um dos livros que publicou com a filósofa da ciência Isabelle Stengers ? La nouvelle alliance, les metamorphoses de la science (A nova aliança, as metamorfoses da ciência), de 1979.
Difícil desenhar um perfil do professor Prigogine num texto de poucas linhas. O mais produtivo é pensar que um escrito assim possa atrair interessados e, neste sentido, indicar trabalhos que ele produziu, publicados em português, ao alcance das mãos.
Um dos mais acessíveis é Ilya Prigogine, do ser ao devir , da série \"Nomes de Deuses\", entrevistas a Edmond Blattchen, transmitida em 23 de novembro de 1977 pela Rádio e Televisão Belga (RTBF).
O depoimento do professor Prigogine integra uma série de entrevistas feitas por Blattchen envolvendo outros nomes da cultura científica, como o cosmólogo canadense Hubert Reeves ( Os artesãos do oitavo dia ), Edgar Morin ( Ninguém sabe o dia em que nascerá ), André Comte-Sponville ( O alegre desespero ) e Jean-Yves-Leloup ( Se minha casa pegasse fogo, eu salvaria o fogo ).
Blattchen e o trabalho que faz na RTBF são uma evidência de que os meios de comunicação social podem e devem ser reabilitados culturalmente para ajudar a construir um sentimento de pertencer ao mundo, condição que os gregos antigos chamaram de Cosmos, no sentido de percepção de harmonia.
A propósito, Ilya Prigogine, do ser ao devir foi editado pela Editora Unesp, em formato de livro de bolso, com 85 páginas. é uma porta de entrada promissora para quem se interessar por outras obras como Entre o tempo e a eternidade (Entre le temps et l?eternite), também escrito em parceria com Isabelle Stengers, publicado em 1988 e, em 1992, editado no Brasil pela Companhia das Letras.
A mesma Unesp publicou, em 1996, O fim das certezas, tempo, caos e as leis da natureza (La fin des certitudes, temps, Chaos et Lois de la Nature). O ano passado saiu As leis do caos (Le lois du Chaos).

Direito de escolher

No diálogo com Blattchen, Prigogine defende-se de uma das inúmeras acusações que sofreu ? neste caso, do matemático francês René Thom, acusando-o de \"deserção\". Prigogine diz que a posição de Thom está ligada ao fato de que \"para ele a ciência deve estar baseada no determinismo: se eu evitar o determinismo, serei desertor. Em suma, ele propõe: Jesus ou Newton, é preciso escolher. Na minha opinião, é uma maneira errada de colocar o problema. Porque, se verdadeiramente o Universo for um autômato, não há maneira de evitar a idéia de que é um deus, alguma coisa de exterior, que o pôs em movimento. Portanto, o materialismo clássico, o determinismo clássico, conduz justamente a uma teologia. Enquanto que, se você tiver a auto-organização, uma construção pelo interior, a questão de Deus se coloca diferentemente. Quer essa construção venha das leis da própria natureza, ou de um programa exterior; mas, em todo o caso, há uma escolha, uma liberdade e uma responsabilidade\".
Ainda a propósito das \"potencialidades\" da matéria, ele faz uma homenagem a Giordano Bruno, queimado vivo, com a boca pregada, pela Igreja Católica, em 1600, acusado de heresia: \"Giordano Bruno era alguém que sonhava com muitas coisas. E sua época foi um período interessantíssimo, porque era o fim do aristotelismo, pouco antes de Galileu e da eclosão da ciência moderna. No fundo, creio que estamos num período semelhante. Também nós estamos num período que vê uma nova natureza, uma natureza mais complexa\".
No prefácio que escreveu para a edição brasileira de Entre o tempo e a eternidade , Prigogine diz que \"o paradoxo do tempo ? o fato de que as leis fundamentais da física neguem a diferença entre o passado e o futuro, sem o qual não podemos conceber nem a experiência humana, nem sequer os procedimentos experimentais sem os quais não haveria experiência física ? não pode ser resolvido sem uma mudança radical do modo de conceituação que está na base da física há mais de três séculos\".
Num outro prefácio, agora de A flecha do tempo (Peter Coveney e Roger Highfield, editora Siciliano, 1993), Prigogine escreve, a propósito da existência de uma flecha do tempo: \"Desde os pré-socráticos esta pergunta vem fascinando muitos filósofos, cientistas e artistas ocidentais. No entanto, no final deste século, podemos fazer esta pergunta em um novo contexto. Para um físico, a história científica do nosso século pode ser dividida em três partes: a primeira é o desenvolvimento associado aos novos esquemas conceituais, a relatividade e a mecânica quântica; a segunda, a revelação dos resultados inesperados que incluíram a instabilidade das partículas ?elementares?, a cosmologia evolutiva e as estruturas de não-equilíbrio que abrangem diversos fenômenos, entre os quais os relógios químicos e o caos determinístico. A terceira (atual) nos confronta com as necessidades de se pensar na física de maneira nova, levando em conta esses desenvolvimentos\".
Paul Davies, em O enigma do tempo (Ediouro, 2000) abordando O tempo de Newton e o universo como mecanismo de relógio, retoma Prigogine ao argumentar que \"enquanto a maioria das culturas antigas via o Cosmo como um organismo vivo e caprichoso, sujeito a ciclos e ritmos sutis, Newton nos deu o determinismo rígido, um mundo de partículas e forças inertes encerradas no abraço de princípios semelhantes a leis infinitamente precisas\".

No diálogo com Blattchen, no bloco sobre o direito de escolher, Prigogine argumenta que \"há possibilidades que fazem com que o Universo não seja, necessariamente, como uma fruta que cai da árvore, uma maçã que acaba na chão, que só pode apodrecer. Não. O Universo está sempre em presença das fontes que presidiram a seu nascimento. O Universo não está acabado...\"
Como se vê, por essa modestíssima amostra, não há razão que justifique, entre nós, o fato de a partida do professor Prigogine ser acompanhada do mais desdenhoso desconhecimento.






Volver al Home