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Shakespeare uma leitura Freudiana
Alexandre M. da Silva

Do mesmo modo que a psicologia atualmente, a literatura me é objeto de interesse e estudo desde o tempo em que fora lançado no mundo

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Shakespeare uma leitura Freudiana

Alexandre M. da Silva (graduando)

Citação favorita de Freud:

Hamlet a Horatio:

?Há mais coisas no céu e na terra, Horatio/

Do que sonha a tua filosofia?



Do mesmo modo que a psicologia atualmente, a literatura me é objeto de interesse e estudo desde o tempo em que fora lançado no mundo das palavras e os seus significados. A crítica literária me apareceu no transcorrer deste ensimesmado processo de contato com escritores brasileiros, latinos, de modo bastante particular, como Gabriel Garcia Marquez, Pablo Neruda, Manuel Scórza, Mário Vargas Lhosa, Julio Cortázar, Antônio Skarmeta, e o argentino Jorge Luiz Borges ? , algumas obras clássicas da literatura universal, e mais recentemente o teatro de raízes políticas, como o de Bertold Brecht.

Cituo Harold Bloom como um dos mais eminentes pensadores e divulgadores da arte da escrita, e um de seus mais recentes trabalhos, O Cânone Ocidental: os livros e a escola do tempo ( Ed. Objetiva, 1994 ), foi o agente condutor que me levou a elaboração deste trabalho. Centrado no capítulo XVI, Freud: Uma Leitura Shakespeareana, encontrei recursos para a discussão acerca dos estudos de Freud sobre a obra de Shakespeare e a maneira pela qual forainfluenciado. Fiz uso ainda de um trabalho intitulado A Formação Cultural de Freud ( Ed. Imago, 1996 ), onde encontrei um capítulo dedicado ao papel de Shakespeare na vida de Freud magistralmente escrito pela psicanalista Clara Helena Portella, da S.P.R.J; e no que me fora possível, eventuais consultas na biografia de S. Freud, elaborada por Peter Gay ( Companhia das Letras ) também foram feitas.

A Psicanálise, e acentuadamente o magnetismo da personalidade de seu genial precursor, têm tomado conta de minha atenção desde o início do curso de Psicologia. Fui encontrar em Freud ( e algum tempo atrás, no psicanalista carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza ) alguns pontos em comum com relação à psicanálise e à literatura: ambos leitores apaixonados (o primeiro pelo classicismo e o romantismo; o segundo pelo romance policial ), e estudiosos (consideradas as esplêndidas proporções ) dos processos intrapsíquicos e seus viéses.

Carl Sagan exporia certa vez, algo mais ou menos assim: ser maravilhoso saber existir num mundo, e num átimo no tempo, em que estas maravilhas ocorrem, tendo em vista a dimensão de todo o universo, e a dimensão de todo o tempo desde os seus primórdios. é provável, talvez, estar fazendo menção as estrelas que trazem de forma generosa maior brilho e incentivo à nossa jornada cotidiana. Quem não as veria?
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A formação cultural de Freud foi obviamente determinante para a criação de todo o seu corpo teórico. As tantas citações que usa nas argumentações do conjunto de sua obra são articuladas de forma que através delas é possível traçar uma linha que nos norteie através da incursão intelectual do gênio austríaco.

Freud fora em toda a sua vida um arqueólogo do conhecimento. Está para a erudição, como a música para os ouvidos. Propugnara certa vez em carta enviada a Wilhelm Flies, datada de 1900:

?Não sou absolutamente um cientista, um observador, um experimentador, um pensador. Não sou senão um conquistador por temperamento, um aventureiro, se você quiser traduzir o termo, com toda a natureza indagadora, a ousadia, e a tenacidade de um tal indivíduo.?

Fez uso de grande parte de seus recursos financeiros para levar adiante a sua coleção particular de obras da antigüidade clássica - Grécia, Roma e Egito. Era um profundo conhecedor de arte, e como era visível em tudo o que levava seu nome, fora um crítico pertinente: seus artigos sobre o Moisés de Michelângelo, e Leonardo da Vinci, entre outros, tornaram-se célebres.

Freud libou cuidadosamente as obras mais eminentes que abriram os umbrais de seu tempo, como Dom Quixote de La Mancha (obra do escritor espanhol Miguel de Cervantes Saavedra, a qual releu durante toda a sua vida, até vir a falecer em 1939 ), o romantismo alemão, essencialmente em Göethe, Heine e Schiller, e ainda Dostoiévski, Sófocles, inúmeros pensadores alemães indo de Immanuel Kant, Hegel, a Shopenhauer, entre outros; os pensadores dos primórdios da mãe filosofia, Platão, Aristóteles, e obviamente, a obra de William Shakespeare. E é exatamente com relação à obra deste último que apresentou uma relação das mais peculiares, tendo uma posição de reverência dirigida para o ator e escritor inglês, e no fim de sua vida, de contestação da autoria de sua obra. O ator de Strattford, e a eminência de sua obra sobre a prodigalidade de Freud, é o escopo central deste trabalho.

A abundância de menções de Freud sobre a obra de Shakespeare está explícita na sua coleção de obras completas, Edição Standard, onde vemos que Shakespeare não é citado apenas em três dos vinte e três volumes da coleção. As principais obras de Shakespeare foram analisadas por Freud: Hamlet, Macbeth, Rei Lear, O Mercador de Veneza e Ricardo III, não obstante, ele dedicou atenção especial as duas primeiras peças, fazendo-lhes menções constantes, dedicando-lhes ensaios, e relacionando ambas de uma forma que auxiliava a exposição de suas próprias idéias acerca da psicanálise, e das estruturas intrapsíquicas. Para Freud, ambas as peças possuíam um elo sensivelmente peculiar: enquanto a primeira era um estudo sobre o impacto da perda do pai ( A Formação Cultural de Freud, 1996, Ed. Imago; p.177 ), a segunda, estaria relacionada com a esterilidade, e a ausência de filhos.

Mas existem outras duas características análogas entre as peças: a primeira, citua ambas como sendo tragédias da consciência ( Ibid., p. 179 ), o que nos leva a emergir nos conflitos dos personagens, no seu universo psíquico atormentado e particular, ou nas palavras da própria autora, aí o mundo interno dos nossos heróis se desnuda, com seu cortejo de fantasmas, dúvidas e inquietações ( Ibid., p. 180 ). Freud sabe bem fazer uso disso para a sua discussão sobre o inconsciente, e nada melhor do que a excelência destas obras para que nós possamos compreender com exatidão aonde querem nos levar os seus argumentos; a segunda, diz respeito a maneira como a loucura é tratada: ?descrições tão perfeitas de um quadro hebefrênico, como o de Ofélia, ou de um obsessivo delirante, como o de Lady Macbeth, nos fazem pensar que Shakespeare houvesse, realmente, observado tais situações patológicas e apreendido seu significado? ( Ibid., p. 182 )

No entanto, embora estes aspectos de sua relação com o universo shakespeareano sejam amplamente interessantes, é em Hamlet que Freud encontra-se em choque mais profundo e constante. Harold Bloom em seu livro O Cânone Ocidental ( Ed. Objetiva, 1994), expõe da seguinte maneira a relação de Freud com a obra sobre o príncipe da Dinamarca: \"Em 1900, Freud já aprendera a mascarar sua dívida shakespeariana; no livro dos sonhos, dá uma explicação bastante completa (embora curiosamente seca) de édipo Rei, antes de passar à pessoa de Hamlet. Temos os enigma de que Hamlet, e não édipo Rei, é a verdadeira preocupação e interesse de Freud, e no entanto o termo escolhido não é \"Complexo de Hamlet\". (...) Na verdade é o complexo de Hamlet e só os escritores e outros criadores o possuem necessariamente.\" ( pp. 365 ? 366 ) Bloom é particularmente ácido ? e muitos vezes, me parece ser extremamente preciso - com relação as análises de Freud sobre a obra de Shakespeare. Alhures, discutirei um pouco mais esta questão.

As conclusões sugeridas por Freud acerca de Hamlet, são curiosas, e dentro do universo psicanalítico tornaram-se clássicas. Freud observa uma relação limite de presumíveis desejos parricidas e incestuosos, entre os personagens centrais da peça de Shakespeare e a de Sófocles. Sua argumentação é corroborada, e acaba por ser sustentada, pelo trecho da peça em que Hamlet reproduz a sua própria peça, a qual chamou genialmente de A Ratoeira. Com relação a este episódio, relata Clara Helena Portella: ? ... seu objetivo [ da peça de Hamlet ] é ?agarrar a consciência do rei?, isto é, fazer Claudius trair-se, para ter a certeza absoluta, compartilhada por toda a corte, de ser o rei um fraticida usurpador. Só que a tal peça tem um enredo peculiar: nela, não o tio, mas o sobrinho, é o protagonista criminoso. O sobrinho mata o rei, seu tio, para se casar com sua tia. O que Hamlet faz representar, então, nada mais é que seu próprio anseio reprimido, disfarçado.? ( 1996, p. 179 ) Através desta exposição sobre Hamlet percebe-se o quanto a relação mãe e filho obcecava Freud e alicerçava seu pensamento analítico. Segundo o próprio Freud: ?Hamlet é capaz de tudo, exceto vingar-se do homem que lhe mostra realizados os desejos reprimidos de sua própria infância. Assim o ódio que o levaria à vingança é substituído por auto-acusações, escrúpulos de consciência, que o fazem lembrar que ele, literalmente, não é melhor que o pecador que estaria por punir.?

Como expus anteriormente, esta leitura de Hamlet feita por Freud tornou-se célebre e objetivo de excitação de um enorme contingente de psicanalistas, e é, em um certo sentido, articulada de uma maneira magistral. Não obstante, estas afirmações, como a grande maioria dos esforços analíticos de Freud, encontraram antagonistas de renome, articularmente no que diz respeito ao críticos literários, sendo um dos principais expoentes Harold Bloom, que citei a priori. E Bloom é a meu ver, um ensaísta da estatura de Freud, a quem reservou o epíteto de um dos maiores [ senão o maior ] ensaístas da história. O crítico norte-americano e professor de Cambridge e Yale, confronta Freud e o movimento psicanalítico sem parcimônia alguma, segundo suas próprias palavras: ? ... a grandeza de Freud como escritor é sua verdadeira realização. Como terapia, a psicanálise está morrendo, talvez já esteja morta: sua sobrevivência canônica deve estar no que Freud escreveu.? ( 1994, p.361 )

Mas é com relação às leituras freudianas de Shakespeare e sobre a vida deste, que Bloom se remete de forma mais generosa, e não menos, depreciativa. Diz o autor: ?édipo foi arrastado por Freud e enxertado em Hamlet (...) As analogias freudianas entres as duas tragédias representam fortes erros de leitura e não podem ser mantidas por uma análise que fuja à supervalorização por Freud do que ele chamou de Complexo de édipo. Um Complexo de Hamlet é uma coisa muito rica, uma vez que não há personagem mais inteligente em toda a literatura ocidental. O édipo de Sófocles pode ter um complexo de Hamlet ( que eu defino como pensar não demais, mas demasiado bem ), mas o Hamlet não tem um complexo de édipo.? ( Ibid., p. 362 ) E mais adiante, ?o conceito de Freud do complexo de édipo é uma obra-prima do que ele chamou de ambivalência emocional, que julgava ter sido o primeiro a formular (...) Hamlet ensinou à Europa e ao mundo a lição da ambivalência por quase quatro séculos já, e Freud foi um dos que vieram depois, na esteira dele.\" ( Ibid., p. 363 ? 364 ) Após esta exposição, Bloom finalmente sentencia, ?cada um que lê Hamlet ou assiste à sua representação é obrigado a tornar-se um intérprete.? ( Ibid., p. 368 ) Para Bloom, as tragédias edipianas de Shakespeare são Rei Lear e Macbeth, mas não Hamlet.

Chamou-me atenção a coerência argumentativa e estilística de ambos os ensaios. Freud fora um estudioso exemplar em todas as áreas que se dedicou. Estudou espanhol e leu Dom Quixote de La Mancha no original. Com Shakespeare não fora diferente, Freud era fluente em inglês. Bloom é há muitos anos professor de literatura e crítico literário de enorme renome em seu meio, particularmente no que se refere a obra de Shakespeare. Ambos os autores entretanto, tutelam Shakespeare à sua maneira e de acordo com seus próprios interesses. Freud não perderia a oportunidade de fazer uso do amplo manancial de conflitos, neuroses, etc., que povoam o universo shakespeareano, para corroborar e ilustrar de forma esplêndida suas hipóteses. E obviamente, não pode-se ler Shakespeare da mesma forma após seu ensaio acerca de Hamlet, O Príncipe da Dinamarca na obra A Interpretação dos Sonhos (1900). Harold Bloom toma a ?defesa? de Shakespeare argumentando que sua obra na verdade é muito mais sutil do que a análise de Freud propugnara, assim como o é o próprio inconsciente: ?camadas mais ?profundas? não existem na mente; o Satanás de Milton, um grande poeta, lamenta corretamente que, em cada profundeza, uma mais abaixo se abre e ameaça devorá-lo.? ( Ibid., p. 369 )

Mas há ainda uma outra questão extremamente interessante e curiosa com relação aos estudosde Freud sobre Shakespeare. Possivelmente no afã de dar um caráter autobiográfico às tragédias shakespearenas, Freud, a partir de 1926, e após a leitura de um livro publicado intitulado Shakespeare Identified, de J. Thomas Looney, abnega completamente a idéia de que Shakespeare fosse o autor de tais peças. Segundo o autor do livro, idéia que Freud abarcou até o fim de sua vida, o verdadeiro autor de todas as peças e de todos os sonetos era Edward de Vere, 17.° conde de Oxford, sob o pseudônimo de Shakespeare. Segundo as palavras do próprio Freud, ?para mim, é inteiramente inconcebível que Shakespeare obtivesse tudo de segundo mão ? a neurose de Hamlet, a loucura de Lear, a ousadia de Macbeth e o caráter de Lady Macbeth, o ciúme de Ottelo, etc.?

Para Freud, a vida interiorana de Strattford não teria fornecido contingências suficientes para gerar a eminência e o prodígio de um escritor de tamanha envergadura, o que obviamente, não se aplicaria a um nobre de província como o conde de Oxford. Pergunto-me, assim como o faz Bloom, por quais razões uma das mentes mais criativas de nossa história, assimilaria de maneira tão indisplicente esta teoria? O presumível autor, duque de Oxford, já estava morto antes das peças Rei Lear, Macbeth, Antônio e Cleópatra, serem encenadas.

Talvez, como um burguês convicto, que tenha vivido numa sociedade vitoriana e de cunho elitista, Freud tenha tido dificuldades em aceitar o prodígio de um ator provinciano e filho de um luveiro. E quanto aos outros gênios que floresceram nos lugares mais inimagináveis tendo em perspectiva o parâmetros de suas obras, como fora com o pintor italiano Caravaggio, ou Wolfgang Motzart, ou Isaac Newton, apenas para ficarmos em alguns exemplos?

Havia, à época de Freud, uma teoria bastante discutida, e aceita por algumas pessoas influentes, de que na verdade a obra de Shakespeare pertenceria a Francis Bacon, um dos principais filósofos setecentistas. Freud no entanto também fora contra esta afirmativa, o que pode ser explicitado segundo as palavras do próprio Bloom: ?recusou-se a tornar-se baconiano, mas por um motivo revelador: a realização cognitiva de Bacon, acrescentada à eminência de Shakespeare, nos daria um autor com ? o mais poderoso cérebro que o mundo já teve?.? ( Ibid., p. 359 )

Em Moisés e o Monoteísmo, Freud já questionara o povo ao qual Moisés pertencera, da mesma forma como questionara os direitos sobre a autoria da obra de Shakespeare. Para ele, Moisés teria sido na verdade egípcio e não hebreu como estava escrito nas sagradas escrituras do velho testamento. Um de seus principais biógrafos, Ernest Jones, expusera que estes estudos de Freud diziam respeito a uma especificidade intrínseca a sua pessoa, que era a de não acreditar que as pessoas fossem aquilo que parecem ser.

Corretas ou não as observações expostas aqui, Freud continua vivo como um dos principais tradutores da cultura ocidental e dos labirintos eidéticos que lhe servem de base.




Referências Bibliográficas:



1. BLOOM, H. O Cânone Ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1994.

2. PERESTRELLO, M. A Formação Cultural de Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1996.

3. GAY, P. Freud: uma vida para o nosso tempo. Rio de janeiro: Companhia das Letras, 1989.




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